sábado, 22 de janeiro de 2011

O DELEGADO DO REGO TORTO


Na primeira metade da década de 1960, uma pequena cidade do noroeste do Paraná, bem ali, na divisa com o Estado de São Paulo e a um pulinho de Mato Grosso do Sul, torna-se município, elegem o primeiro prefeito e a vida segue seu curso natural, sempre pacata e sem maiores transtornos.

Algum tempo depois, vagou no município, o posto de delegado. Como era comum pra época, o prefeito, autoridade máxima, nomeava um dos cidadãos para assumir o cargo. Geralmente, era alguém alinhado aos seus pensamentos políticos, e que impunha algum respeito perante a sociedade. Era os chamados delegados "calça curta".

Nesses termos, foi escolhido para assumir a difícil tarefa de impor a ordem e a paz, o sapateiro da cidade, renomado artesão do couro, homem simples, mas muito justo e sábio, dentro de suas limitações.

O delegado, em sua simplicidade, gostava de usar as calças com o cós repuxado de um lado, o que lhe rendeu de cara a alcunha de “Delegado do rego torto”.

Alguns dos amigos mais próximos, ou, supostamente amigos, para vê-lo furioso, gritavam o apelido quando ele passava e isso o deixava transtornado. Mas, apesar desses pequenos problemas ele conduzia com muita dignidade e competência, a tarefa que lhe fora imposta.

“Delegado do rego torto” fez história, e essa que passo a narrar, foi-me contada por um de seus filhos, o que nem por isso confirma a veracidade, visto que também lhe foi contada por pessoas que supostamente presenciou a cena.

Segundo o relato, numa manhã de segunda-feira como outra qualquer, sem nenhuma novidade para uma pacata cidade do interior, estava “Rego torto” a preencher o tedioso relatório semanal, quando adentra no recinto um cidadão furioso, trazendo consigo sua filha, por sinal, uma bela morena de olhos grandes e amendoados, com uma vasta cabeleira negra moldurando seu lindo rosto, e vai logo intimando o delegado.

— Doutor! O senhor precisa tomar uma atitude.

“Rego torto”, tomado de surpresa, surpreendeu mais ainda com sua aparente calma para conduzir o caso.
— Calma, homem de Deus! Sente-se aí e conte-me o que aconteceu?
— Doutor, é aquele filho da p.... do Tiburcio. Outro dia desses chegou com uma mão na frente outra atrás, sem lenço nem documento, o que fiz? Dei-lhe abrigo, comida, e um trabalho digno. Sabe o que ele me fez como recompensa? Fez “mal” pra minha filha.
Com ar de ingenuidade “Rego torto” perguntou:
— Como assim! Fez mal?
— Desonrou ela. O senhor tem que meter ele no xilindró e dar-lhe uma boa cossa que é pra aprender a não desonrar filha dos outros.
— Ah! Desonrou... Foi á força então? Perguntou olhando para a moça, o que ela negou com a cabeça.
— Não foi à força. Mais isso não importa, o senhor vai prender ele ou não vai?
O delegado refletiu por mais alguns minutos, quando finalmente decidiu:
— Sargento! Chamou.
— Pois não, delegado?
— Traga-me um copo.
O sargento, entre surpreso e curioso para ver o desfecho, imediatamente obedeceu. Chegando o copo, o delegado o segurou sobre a mesa e ordenou:
— Coloque o dedo aqui dentro. Indicou o copo.
O pai, homem simples, obedeceu, meteu o dedo, ou quase, porque o delegado desviou o copo para um dos lados.
O processo se repetiu por várias vezes sem o homem conseguir colocar o dedo dentro do copo, pois o delegado desviava ora para um lado ora para outro. Sem conseguir, reclamou:
— Como que eu vou colocar o dedo se o senhor tira o copo?
Depois de uma pequena pausa e diante dos olhos estupefatos dos ali presentes, deu sua palavra final:
— Tá vendo, se sua filha não quisesse e tivesse feito o que eu fiz com o copo, nada disso teria acontecido. Volte para casa e resolva seu problema, porque eu tenho problemas mais importantes para resolver. Passar bem. Sargento! Acompanhe esse senhor até a porta.

sábado, 15 de janeiro de 2011

CONTOS E CAUSOS

COISAS DO 'DESERTO'

Sempre que conto este causo, meus amigos dão muita risada e depois ficam tirando onda comigo, dizendo que é mentira ou coisa do gênero, mas, como eles sempre pedem bis, resolvi escrever essa história que é mais ou menos assim...

Eu tinha um cachorro que se chamava Deserto.

Era um cachorro muito especial. Ele demonstrava alegria fora do comum quando um de nós retornava para casa. Cachorro paquero, só no nome, pois como caçador era um desastre. Na verdade ele não tinha uma raça bem definida, parecia-se com um bassê, ou era um bassê, sei lá! Só sei que era comprido, baixinho e de orelhas enormes, iguais aqueles de uma certa propaganda de amortecedores. Talvez, um pouco maior.
Como disse antes, para caçar era um desastre, medroso, preguiçoso, porem, muito querido, era do tipo que, quando ia bater nele, ao invés de correr, deitava de costa, abria as pernas e a boca numa gritaria danada.

No ano de 1968, com apenas sete anos, numa bela noite de verão, depois de muito esforço para convencer minha mãe de que eu já tinha condições de participar de uma caçada de tatu, resolvemos organizar uma: eu, o Dé, Chico, Nego,Elias e Tião. Cada um tinha uma função mais ou menos definida no grupo. Eu, por exemplo, tinha a função de iluminar, com a lamparina caso encontrasse alguma toca e fosse necessário cavar, já que não tinha condições físicas para exercer outra atividade.

Nossa propriedade, um pequeno sítio de dez alqueires ficava à margem esquerda do ribeirão do Corvo, Noroeste do Paraná. Tinha um capão de mato, (reserva) de floresta original, com caça em abundância e sem as chamadas leis de proteção à Fauna e a Flora, onde costumávamos caçar.

O Dé, como o mais velho e, portanto, no comando, distribuiu as tarefas:

— Elias, você e o Chico peguem os cachorros e vão na frente que eu e os meninos vamos ajeitar as ferramentas (facão, foice, enxadão etc.) e iremos a seguir.

— Está bem! Disse o Elias, mas eu não vou levar o Deserto. Ele só atrapalha.

— Leva sim, vai que precisa ajudar a cavar e o Guarani (cachorro caçador) sozinho pode cansar.

— Está bem! Vamos levar então.

Partiram, e com poucos minutos, já ouvimos latidos do Guarani que já tinha acuado um tatu. Corremos para lá.
Chegando lá, só vimos terra vermelha que subia e o Guarani, cachorro valente como poucos, ia arrancando até pequenas raízes com os dentes, na ânsia de capturar a caça, mas, como a toca era no pé de uma enorme peroba rosa e não dava para ajudar com os enxadões, o jeito foi deixar o cachorro fazer o serviço. Claro que depois de alguns minutos, como era de se esperar, o Guarani demonstrou cansaço.

Foi então que o Dé teve a brilhante idéia de tirar o Guarani e colocar o Deserto para cavar um pouco, afinal, ele tinha ido para isso.

— Chico, tire o Guarani do buraco para ele descansar, enquanto coloco o Deserto para cavar um pouco.

— Só se os meninos me ajudar, porque não vai ser fácil tirar ele do buraco, tem que tirar a força e ficar segurando (cachorro valente).E assim foi feito.

O Dé introduziu o Deserto no buraco, para dar sequência na escavação. Foi nesse momento que o bicho demonstrou toda sua qualidade preguiçosa:
— Snif, snif, frull... au... au... frull... au... au...

Ele dava umas farejadas, emitia um som característico e umas latidas abafadas e nada de cavar. E nós incentivando-o. Pega! Deserto. Pega!...

Ele, depois de várias farejadas e muitos latidos, resolveu cavar. Claro, dentro do seu estilo.
Escorou o corpo sobre a pata esquerda e começou cavar com a direita, com algumas pausas para farejar novamente e tornar a latir.

— Snif, snif, frull... au... au... frull... au... au...

O Dé, nessas alturas já começava a ficar furioso. O Chico, bastante gozador, começou a provocar:

—Nós falamos para deixar essa tranqueira em casa que ele só atrapalhava! Agora toma! Acho é pouco.

O Dé, coitado, resolveu dar mais uma incentivada no cão.

— Vamos Deserto, Pega! Pega!...

Que nada, o Deserto continuou na mesma batida, ele apenas trocou de lado e começou a cavar com a pata esquerda.

Isso foi demais. O Dé pegou ele pelo rabo, girou umas duas vezes sobre a cabeça e o atirou numa moita de arranha gato próxima.

Ele fez o escândalo que lhe era peculiar e sumiu para casa, chorando e todo arranhado.
A caçada parou por aí. Apesar do Guarani ter tirado o tatu, voltamos um pouco frustrados.

Quando chegamos em casa, o Deserto já estava nos esperando, saltando e abanando o rabo com a maior alegria do mundo, como se nada tivesse acontecido.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

GERAÇÃO SANDUÍCHE

Numa dessas reuniões de final de tarde, estavam meus amigos e eu a tratar de diversos assuntos peculiares a esses encontros, quando surgiu um que chamou minha atenção em especial.
Começamos a falar sobre a nossa geração, de nossos pais e de nossos filhos, num saudosismo evidente e compreensível, quando um amigo disse:
— Quer saber de uma coisa? Nós somos da “geração sanduíche”.
Entre a dúvida e a surpresa, questionei. Como assim, “geração sanduíche”?
— Veja bem, ele respondeu. Somos do tempo em que a palavra do pai era sinônimo de respeito, desobedecer era algo impensável, quando isso acontecia, na maioria das vezes era uma tremenda “surra” ou, na melhor das hipóteses um belo sermão que deixava a gente mais dolorido que a própria surra. Era um misto de respeito e medo. Mas hoje, com medo de repetir a forma rígida, e as vezes com dureza excessiva com que fomos criados e, querendo ser melhor para nossos filhos do que eles foram , acabamos nos perdendo em algum ponto da história e nos deixando levar por um caminho sem volta, onde nossos filhos, além de não nos obedecer, na maioria dos casos, desconhecem a palavra respeito. Medo então, nem pensar, nós é que temos medo deles.
Fui pra casa, comecei a refletir sobre o assunto e cheguei a seguinte conclusão: apesar das adversidades, da dureza e muitas vezes do uso de certa violência na nossa educação, descobri que essa forma foi muito eficaz, fez mais bem que mal para nossa geração, afinal, sobrevivemos e estamos aqui hoje para contar a história, com caráter formado e sólido.
Já a geração de nossos filhos, o futuro é incerto, pois a estrutura familiar se desmoronou, os filhos não têm respeito nem medo dos pais, não respeita os mais velhos e pouco ou quase nada seus professores, estão mais expostos às drogas e a violência, parece que não têm perspectivas na vida.
A relação pais e filhos não têm mais aquele respeito, mesmo que um pouco forçado da nossa geração. Aliás, tem só que ao contrário, nós fazemos o que nossos filhos querem, são eles quem manda em nós.
Moral da História... Obedecemos nossos pais no passado e no presente obedecemos nossos filhos. Não mandamos em ninguém em época nenhuma. Sem dúvida, somos a GERAÇÃO SANDUÍCHE.
Espero estar errado em minha conclusão. Quero, como pai, ser surpreendidos por essa juventude, e torcer para que eles retomem o caminho do respeito as tradições e as gerações passadas, sem perder o ideal de liberdade, acompanhado das evoluções tecnológicas de seu tempo. Afinal, os princípios básicos de ser humano comprometido com o seu tempo e o futuro da humanidade, bem ou mal, foram passados através das gerações.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

CONTOS E CAUSOS

MEMÓRIAS DA INFÂNCIA
— Papai, porque paramos aqui?
— É para o papai mostrar onde ele nasceu e passou boa parte da infância. Está vendo aquela enorme moita de bambu do outro lado do rio?
— Sim, estou vendo.
— Pois é, a casa que nasci ficava pertinho dela. Vê aquela árvore a esquerda?
— Sim, é enorme. Que arvore é aquela?
— Uma amoreira. Papai costumava brincar nela. Seus galhos desciam até o chão, eu subia no alto de sua copa e descia escorregando pelos galhos. Já levei algumas surras da vovó por sujar a roupa com a tinta das amoras.
— Você não tinha videogame para brincar!?
— Não filho. Naquela época não existia nada disso, nem televisão existia ainda nestas redondezas. Quando olho essas terras, começa a desfilar na minha memória os bons e divertidos momentos que passei ali com meus irmãos e com amigos.
— O senhor deve guardar muitas lembranças dessa época...
— Sim, muitas lembranças...
Como poderia esquecer do meu cachorro “deserto”, paqueiro, fino, comprido e de orelhas grandes quase arrastando no chão, que apesar de medroso e preguiçoso, era muito atrevido e amável, tinha pavor de lagarto e tatu, mas, em compensação, era o terror dos gambás que vinham atacar o galinheiro... Da égua “roxinha”, que a Elza comprou e que fui o primeiro a montá-la e também o primeiro a descobrir que era “bardosa”, caindo alguns tombos no chão duro do carreador do sítio... Das tardes de domingos que passava nadando no ribeirão junto com os irmãos e amigos e da cobra que teimava em nadar no nosso espaço de lazer, que foi banida à “canga-pés”... Do dia-a-dia com uma lata d’água na cabeça, transportando água da mina para encher a caixa que abastecia a casa... Do dia em que resolveu ser equilibrista sobre a forquilha que suspendia o varal de arame farpado e que ficou pendurado pela cocha por longos minutos até a mãe vir socorrer... Do campinho onde todas as tarde participava das “peladas”... De quando todos se reuniam, inclusive os grandes para brincar de “feda”(esse termo se perdeu no tempo, nunca mais ouvi falar), ou “esconde-esconde”, ou ainda caçar “vagalumes” e ouvir causos de assombração nas noites escuras... Das noites de lua clara quando todos se agrupavam no terreirão para cantar músicas sertanejas e ouvir o Elias tocar violão... Das épocas de secas em que se fazia novena à Santa Clara para chover, onde a Santa era levada de sítio em sítio e de casa em casa, quando saia sorrateiramente durante o terço com os amigos para passar cocô nas porteiras e depois voltar dissimuladamente como se nada tivesse acontecido (a santa que nos perdoe)... Da vez em que escondeu com a Vilma numa moita de capim para assustar o cavaleiro que vinha em nossa direção, pensando ser o irmão, e quando o homem caiu do cavalo, percebeu o erro que tinha cometido e teve que sair correndo para não apanhar do estranho... Da carreira que o Paulo deu no Saci Pererê lá na roça de algodão... De quando estava construindo o terreirão para a secagem de café e do retângulo de argamassa que demorou mais de vinte e cinco dias para secar (mistério)... Da caçada de nhambu no capoeirão com o Elias em que munidos com uma espingarda não trouxe nada e o Dé, com um bodoque, voltou com o picuá cheio... Dos passeios à cavalo aos domingos pelos sítios da redondeza em busca de frutas... Das obrigações que aos pequenos eram impostas, tais como: levar almoço na roça, colher mamão, abóbora, mandioca e toda sorte de forragem para tratar dos porcos, dar milho para as galinhas, fazer a coleta dos ovos e depois ir para a escola... Das carreiras que levou da vaca “chitinha” a caminho da escola... Da vontade que tinha de ter uma lancheira recheada todos os dias... Das brincadeiras de “bisteca deixa cai no chão não se mexa”... Das vezes que ficava de joelho na frente da sala durante bom tempo da aula, castigo imposto pelo professor, devido a alguma traquinagem que tinha cometido... Dos amores da infância... Das lutas corpo a corpo que sempre acabavam em brigas... Das festas de casamento onde os comes e bebes eram a base de frango e macarrão, regados a vinho e guaraná e embalados ao som de uma sanfona, um violão e um pandeiro... Das vezes em que papai matava um “capado”, aliás, eram sempre dois, um, para o consumo da casa e o outro para repartir com os vizinhos... Das muitas vezes em que papai chegava da roça, pegava o caniço e ia ao ribeirão “buscar mistura”. Ribeirão piscoso que serpenteava no fundo do vale... Dos túneis que escavavam no algodão que estava depositado na tulha... Da vez em que levou uma mordida da égua “bainha” na cabeça, quando estava ajudando amontoar o café no terreirão... De quando caiu de cara no monte de estrume, na tentativa de imobilizar uma vaca para o irmão fazer um curativo... Das idas à cidade com os pais para fazer compra e do dia que deixou definitivamente o sítio e foi pra cidade.
Depois de relembrar cada detalhe, busquei com o olhar o local em que nasci e pude ver que, além da moita de bambu e da amoreira, nada mais existia daquele meu mundo. O rio que serpenteava o fundo do vale virou um grande lago devido ao represamento do principal rio da bacia, a casa não existia mais, no que foi o enorme terreiro onde brincávamos, existia agora um pequeno bosque, na maioria, de arvores exóticas, onde outrora era o capão de mato e a área de cultivo virou pastagem, os sítios vizinhos desapareceram dando lugar a enormes fazendas, e aquele turbilhão de gente que vivia naquela área, hoje se resume a um senhor que cuida do rebanho. Daquela paisagem bucólica da minha infância, restaram apenas lembranças.
— Papai. Vamos pra casa?— Vamos filho. Vamos sim...