sexta-feira, 22 de abril de 2011

QUE A SANTA NOS PERDOE

Houve uma época de grande estiagem aqui pras nossas bandas, não lembro ao certo em que ano, só sei que foi na década de 1960. As lavouras começavam a sentir a longa estiagem.

Naquela época o agricultor não tinha a quem recorrer para sair dessas situações desesperadoras como a perda da produção, não tinha os chamados programas de governo (Proagro ou similar), o jeito era apelar para as orações, na esperança de que chovesse a tempo de salvar as plantações, e isso, se fazia através de novenas.

Essas novenas eram rezadas em todos os sítios e em todas as casas, onde o santo ou a santa invocada tinha a imagem transportada pelos fiéis da comunidade, em procissões. Neste caso, se não me engano, era Santa Clara.

Em cada casa que se rezava o terço, era costume servir café com bolinhos de chuva e quitutes caseiros de toda ordem, era na verdade, para as crianças, uma verdadeira festa. Estávamos em todas.

Entre os adultos fiéis sempre tem alguma carola metida a besta que implica com tudo e com todos, principalmente com as crianças, se achando a dona da verdade e ungida pela santa. Nessa, não era diferente, tinha a tal de D. Gina, mulher roliça, de meia idade, sempre puxava a procissão, e graças a essas qualidades, ela conseguiu angariar a antipatia do grupo de meninos, e também dos marmanjos, pois implicava com os namoricos furtivos da rapaziada.

Certo dia, o Chico meu irmão teve uma idéia (daquela cabeça sempre saía alguma coisa). Reuniu a turma e explicou:

— Então pessoal! Que tal sacanear essa véia chata?

— Só se for agora. Qual é o plano? Perguntou o Adé.

— É o seguinte: como ela é muito pra frente, amanhã, durante o terço na casa do Bereta, nós saímos escondidos, vamos até a porteira, passamos merda na tranca e voltamos como se nada tivesse acontecido, quando a procissão prosseguir e ela for abrir a porteira, vai ser uma meleca só.

— Ótima idéia, respondeu o Adé, só que temos que passar nas tábuas da porteira também, pra não ter escapatória, principalmente para aqueles moleques que vão na frente e passam entre elas.

— Combinado então. E vocês molecada, bico calado, ninguém pode saber disso, falou se dirigindo a nós crianças.
E assim foi feito. Durante o terço, todos concentrados na reza, um por um foi escapando de fininho e de repente, todos estavam reunidos na porteira, não se sabe como, mas munidos da matéria-prima necessária para conclusão da obra.

Tudo saiu direitinho, dentro do combinado. Aos poucos, foram voltando um a um sorrateiramente para ninguém perceber nada. Enquanto isso, o terço continuava e todos já de volta, ali com a cara mais santa do mundo como se nada tivesse acontecido.

Terminada a reza, foram servido a todos o tradicional cafezinho e a prosa rolou solta, todo mundo contando as novidades, dentro da maior normalidade do mundo. Os rezadores se despediram do dono da casa e a procissão seguiu viagem, nós acompanhamos como normalmente fazíamos, para não levantar suspeitas, entoando cantos e rezas como de costume, pois, apesar das molecagens, éramos fervorosos fiéis.
Quando a procissão chegou à porteira foi aquela confusão. Dona Gina, pra frente como só ela mesma, meteu a mão na meleca e gritou.

— Quem foi o desgraçado do moleque que passou merda na tranca? Filho da outra... daquela outra... e foi desfiando um rosário de impropérios. Enquanto isso, os moleques mais adiantadinhos também foram passar entre as tábuas e se melaram todos.

Aí sim é que a coisa pegou fogo, foi aquele alvoroço, todo mundo xingando todo mundo e querendo saber quem foram os malditos que fizeram tamanha barbaridade, que aquilo era uma afronta a Santa, que eles iriam para o inferno, que ia acontecer isso, aquilo... enfim, todo tipo de pragas e maldições foram lançadas sobre nossas cabeças.

A confusão foi tanta e disseram tantos impropérios que todas as orações feitas antes, devem ter idas por água abaixo. Enquanto isso, nós nos divertíamos vendo a megera ser motivo de chacota de toda a turma, indo embora de cabeça baixa para casa se livrar do forte odor que impregnava até a alma.

A nossa vingança foi terrível. Vingamos as maldades que ela cometia contra nós crianças e ainda livramos o grupo de sua indesejável presença na novena, pois, a partir desse dia, ela nunca mais apareceu nos terços.